Sim, Brasília.
Admirei o tempo
que já cobre de anos
tuas impecáveis matemáticas.
Paulo Leminski
E em sua memória ficavam, no perfeito puro, castelos já armados.Tudo, para a seu tempo ser dadamente descoberto, fizera-se primeiro estranho e desconhecido… Esta grande cidade ia ser a mais levantada no mundo.
Guimarães Rosa
Como os candangos de Brasília, eu, também, me considerava um “construtor de catedrais”.
Juscelino Kubitschek
Introdução:
Sete noites e um enterro
Num ponto pensei em me desfazer do que pesquisei e escrevi, deixar minhas lembranças, medos e inquietações para um livro de memórias em que contaria não apenas minha infância na Cidade Livre, a cidade que viera romper o silêncio que por milênios dominara aquele planalto, mas também meu interesse pelo jornalismo, meu encontro com minha atual mulher e o nascimento de meus três filhos, relegar minha pesquisa para as reportagens e me concentrar nas palavras de papai, palavras que ainda vim a corrigir depois de uma conversa com tia Francisca durante seu enterro.
Mas não, meu relato manteve misturadas minhas memórias, as de papai, minhas pesquisas e as observações de tia Francisca, e cometi o erro de entregá-lo a um escritor que o esvaziou de vírgulas e pontos, o encheu de gírias e cenas de violência, me alertou ser preciso acrescentar-lhe uma dimensão moral e filosófica e ainda me perguntou se continha algum ensinamento, o que achei um absurdo e por isso decidi enviá-lo à editora mesmo sem a moral, a filosofia e o ensinamento, me chateando depois com a resposta polida de que não se enquadrava na sua linha editorial.
Pensei em vender meu carro para bancar a edição, cortei os floreios e restabeleci meus pontos e vírgulas, pois não tinha tempo a perder com filigranas estilísticas e acho mesmo uma vantagem ser jornalista: de Lucrécia, que vê um pássaro, nunca direi que o vento suspirava docemente sobre sua fronte, nem que sua beleza esmaltou-se de ternos sorrisos, nem que seus olhos se estendiam pela imensidão do Cerrado ou adejavam com o pássaro pelos campos vermelhos. Quando eu estava a meio caminho andado, um crítico que se dizia meu amigo me censurou não apenas o estilo, mas também o conteúdo, Esse seu experimento vai ser um desastre, anunciou, e atribuí o vaticínio a uma divergência política, pois estávamos em lados contrários, ele me via como retrógrado e ainda agora passa por mim sem me cumprimentar, mas devo a ele a sugestão de criar este blog e ir publicando a história aqui, como folhetim do século dezenove — com o que salvei meu carro.
Não tenho a presunção de saber tudo o que aconteceu naqueles tempos, posso ter errado, escrito demais ou de menos, vocês sabem que memórias e pesquisas são falhas e incompletas, melhor então confessar já de cara que muitos fatos esqueci e, dos que me lembro, nem sempre me lembro com certeza ou precisão, por isso este é um texto para ser modificado pelos leitores, como se eu tivesse criado uma wikipédia desta história, com apenas as regras de que nas minhas memórias, de papai e de tia Francisca somente eu posso mexer, e o resto – a descrição dos fatos que nos dão a impressão de sermos parte do espírito de um tempo –, vocês leitores do blog podem corrigir à vontade, e, se tiverem algum caso a contar ou comentário a fazer, que não se intimidem.
Ao longo do processo, ainda acrescentei uma ou outra opinião pessoal e corrigi o que sabia a partir do que foi publicado sobre Brasília até este ano de 2010, acumulando assim uma dívida profunda para com Isaías P. Ferreira da Silva Junior, cuja obra analisa minuciosamente a flora e a fauna, os primeiros habitantes e acompanha os detalhes da construção, um trabalho que é ao mesmo tempo de historiador, antropólogo e sociólogo. Uma dívida ainda maior ele tem com muitos e muitos outros que, através de relatos históricos, análises sociológicas ou antropológicas, memórias, testemunhos, depoimentos em jornais, reportagens, crônicas, poemas, contos e até mesmo romances, procuraram desenhar um painel sobre a Cidade Livre, também conhecida como Núcleo Bandeirante, na época da construção de Brasília.
É ainda em papai que encontro a inspiração para publicar este livro, pois, quando ele tentava conciliar seu interesse crescente pela construção civil com a atividade jornalística, me dizia que também na escrita havia construção, e a gente ia pondo tijolo sobre tijolo, e com esse ensinamento presente há muitos anos levei adiante seu bastão de jornalista e é a partir desse mesmo ensinamento que rearrumo os tijolos para compor este relato na sua forma atual.
Finalmente agradeço a revisão de João Almino, que eu conheci em 1970 quando pela primeira vez pôs os pés em Brasília, e foi dele o incentivo para que eu começasse a escrever esta história. Até aqui este é o único parágrafo que vocês, leitores do blog, comentaram, querem porque querem saber meu nome ou pelo menos se sou ou não sou João Almino, como se a história mudasse de sentido dependendo de quem seja seu autor, mas paciência, mantenho meu anonimato pela simples razão de que me dá mais liberdade, sobretudo liberdade para ser sincero.
JA
Leia a continuação: fragmento do capítulo “Primeira noite: de A a Z”
Fonte: http://www.joaoalmino.com
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